segunda-feira, 5 de março de 2007

Primeiro Encontro: Tem a fé algum cabimento?

Sobre as raízes do crer

A fé é por vezes considerada uma realidade de terceira categoria, como se o acreditar fosse sinal de falta de inteligência. No entanto, será isto realmente verdade? Será que a crença não estará enraizada no próprio existir humano? Como veremos sucintamente, o acreditar é estrutural nas diversas dimensões da nossa existência. Senão, vejamos:


Ponto 1: O acreditar e a memória

A nossa identidade, embora tendo diversos planos, conhece na memória uma instância fundamental. Nela guarda-se o nosso património de vida, desde os seus elementos mais corriqueiros (onde moro, onde estudo, os últimos acontecimentos que vivi, a última conversa que tive com os meus amigos) aos mais profundos (os que preservamos como tesouros preciosos ou como imagens sombrias, cuja lembrança nos arrepia, deixando-nos com pele-de-galinha). Outros elementos estruturais da identidade consistem nas histórias de família (quem são os meus pais, experiências de vida, …). Mas se essas tradições familiares nos são importantes (porque nos fazem sentir em casa), contudo, como podemos fundamentá-las (ou seja, confirmar se são ou não verdadeiras) senão, num primeiro momento, pela confiança na memória dos outros? Como sabemos se são ou não verdadeiras? De facto, o nosso património familiar (as histórias de família contadas em torno da lareira – ou do aquecedor a óleo – em noites invernosas) é, bastante, um edifício assente sobre a confiança.







Genealogia: será esta a minha família?




Ponto 2: O acreditar e as relações interpessoais

«Como é que te chamas?» (ou, na versão msn, «kem és?»). Esta é a pergunta clássica que abre muitos dos primeiros encontros. No entanto, é também o momento inaugural do grande jogo da confiança, já que todas as palavras pronunciadas a partir desse momento que digam algo para lá do imediatamente visível (como a roupa que se traz vestida, a marca dos ténis, …) entrarão na memória como acolhidas pelo acreditar. Afinal, quem me garante que este com quem me encontro se chama Hermenegildo (como diz) e não Asdrúbal?
Cada relação processa-se ao ritmo da confiança, onde a coerência de vida (o permanecer Hermenegildo dia após dia) credibiliza as palavras, confirmando-as na confiança.
De facto, o acreditar é condição necessária para que as relações se estruturem. E porquê?

Acreditar no outro é admitir que a sua palavra tem valor e que, mais profundamente, a sua palavra me acrescenta algo.
Exemplo claro disso é o da célebre situação do pedido de informação.

Acreditar no outro implica, claramente, um abandono à sua palavra como forma de poder seguir caminho evitando os diversos becos com que a solidão rapidamente se depara.
De facto, o acreditar revela, no ser humano, a sua interdependência, a sua carência dos outros, na consciência de que a sua história, as suas palavras, o seu conhecimento podem ajudar a supri-la e, por conseguinte, ajudam a viver.

Ponto 3: O acreditar e a ciência

Chegamos, então, a uma esfera à qual, aparentemente, o acreditar é alheio. Mas será realmente assim?
O saber científico elegeu, sobretudo a partir de Galileu, a experiência (ou, diríamos, o sujar as mãos na realidade) como lugar crucial para a descoberta (e, por conseguinte, do próprio conhecimento). Rapidamente, a realidade viu-se assaltada, nos seus variadíssimos âmbitos (desde a física à matemática, passando pela anatomia, química, biologia, botânica), pela humana sede de saber, ao ponto de a ciência se afirmar como um saber de saberes (dada a multiplicidade das necessárias disciplinas).
Porém, quando o volume de conhecimento se tornava imenso, torna-se imperativa a articulação entre os saberes, onde cada investigador, para promover o seu estudo, se vê obrigado a recorrer aos dados obtidos por outros (e este é o primeiro momento da confiança científica), já que é impraticável refazer, para cada cálculo, todo o percurso científico que o tornou possível (sejam as fórmulas matemáticas, sejam os métodos científicos, sejam os próprios instrumentos de medição).
Mais profundamente, o conhecimento científico radica na confiança na própria teoria científica vigente, válida apenas enquanto capaz de superar os diversos problemas, sendo que todo o conhecimento científico tem essa marca do provisório (pois que dura enquanto a teoria durar, correndo o risco de ter que ser reformulado caso se descubra uma nova, tida como mais apta).








Sistema geocêntrico e Sistema heliocêntrico (de Copérnico)


Exemplo: Passagem do modelo científico geocêntrico para o heliocêntrico.


Ponto 4: O acreditar e a crítica

Como vimos ao longo deste percurso por alguns dos diversos planos da vida humana, o acreditar parece ser estrutural. Porém, resta perguntar: como pode o acreditar ser um caminho para a verdade (da memória, das relações, do conhecimento)?
Num primeiro momento o acreditar diz apenas a nossa tendência para o outro (confundindo-se, aqui, com o gostar: «acredito por que gosto dele ou dela»), mas nem por isso se apresenta como critério suficiente para a descoberta da verdade (não basta, portanto, gostar muito dum mentiroso compulsivo para fazer do que ele diz uma verdade…).

Precisamos da inteligência do acreditar, isto é, da crítica, da busca dos comos (na ciência) e dos porquês (nas relações interpessoais, na filosofia e na fé) da realidade. Neste sentido, fé e razão científica mostram-se muito próximas: ambas precisam de fazer a pergunta «será mesmo assim?» para se poderem estruturar. De contrário arriscar-se-iam a acreditar no absurdo…

Próximo Encontro: Afinal, o que é a fé?